"A
mulher cobriu o rosto com o capuz e deixou a floresta.
Ela caminhava tentando não fazer barulho com
seus sapatos, mas estava certa de que os aldeões a ouviriam quando alcançasse a
Praça do Chafariz. Se tivesse alguma sorte, muitos dos vendedores já teriam
tomado o lugar com as barracas e sua figura insignificante passaria
despercebida entre eles...
O problema é que ela não acreditava em
sorte.
Elenim era uma mulher que jamais levara em
conta o acaso e tinha certeza de que hoje não seria a primeira vez. Sabia que
era uma loucura deixar o marido em casa em tempos como estes e que ninguém em
seu lugar se arriscaria de tal maneira. Mas não havia escolha. Era, afinal, uma
mulher de honra. Prometera, em nome do filho, ajudar no que fosse possível na
luta do Círculo. Talvez, se pudesse ajudar de alguma forma aquelas pessoas, se
seus esforços mínimos pudessem contribuir para acabar com aquela guerra, talvez
o filho pudesse voltar são e salvo para casa...
Com um susto, percebeu que a praça já
aparecia mais à frente, com alguma movimentação. Acelerou os passos e tentou
manter o rosto escondido sob a sombra da capa, sentido o vento cortar sua pele
suavemente. Os cartazes de alistamento de novos Guardas se espalhavam por toda
parte e isso deixou seu coração ainda mais inquieto.
“Como Skan podia fazer isso?” Pensava com
desprezo. “Como podia enganar as pessoas dessa maneira?!”.
O Chafariz Congelado surgiu assim que as
casas terminaram e o centro da praça se abriu à sua frente de forma
assustadora. O singelo monumento estava brilhante e petrificado como sempre
estivera nos últimos milênios, escondendo a grande rede de túneis, que poucos
sabiam existir, sob o objeto de prata.
Mas o mais assustador da Praça vinha logo em
seguida. Por trás do Chafariz e próximo ao antigo Templo dos Deuses, um palco
de horror lançava uma onda de medo em todas as direções, exibindo até em que
ponto o rei estava disposto a ir naquela guerra. A Forca, que já havia
executado uma centena de pessoas, agora exibia seis corpos vacilantes, cujos
donos haviam sido condenados por traição à coroa. O mais triste e assustador
era o da última condenada, uma garota de quinze Eras, cujos pais haviam sido
pegos conspirando contra o rei.
Mas Elenim sabia que não havia conspiração.
O crime pelo qual a garota havia pagado estava além da pura audácia de
enfrentar o rei. O que a menina e seus pais queriam realmente fazer era abrir
os olhos do povo... E Skan não iria permitir isso.
Elenim virou uma esquina e atravessou a praça
sem chamar a atenção. Os poucos comerciantes que estavam pelo caminho estavam
tão preocupados com os produtos em exposição que quase não viram a mulher
passar pelo local. Os que viram, não se
preocuparam também. Havia muito trabalho a se fazer.
Quando viu que a passagem pela praça fora
mais fácil do que o esperado, Elenim suspirou aliviada e imaginou que, talvez,
finalmente a sorte estivesse sorrindo para ela. Quem sabe aquele dia, enfim, fosse fazer alguma diferença? Quem sabe
não fosse realmente o seu dia de sorte? Era isso pelo menos o que esperava
quando, por fim, chegou ao seu destino.
Três batidas na porta pareceram uma dezena
de relâmpagos no silêncio da rua que acabara de chegar. Ela olhou aflita para
os lados e, pelo que pareceu uma eternidade, aguardou do lado de fora. A porta
se abriu lentamente e, através de uma fresta, um olho cheio de rugas encarou a
mulher por um segundo e a estudou. No instante seguinte, Elenim já saltava para
dentro e a porta batia com força às suas costas.
― Onde está Gordem? Eu disse que precisava
dos dois!
Um homem baixo e esquelético olhava com uma
mistura de desespero e raiva para Elenim, enquanto procurava algum sinal do
marido da mulher.
― Achei melhor vir sozinha. Já viu como está
lá fora? Há Guardas por toda parte! Não dá mais para fazer esse tipo de coisa,
Tiown, eles estão desconfiados demais! Temos fornecido poções demais pra vocês!
― Não importa! ― Tiown gritou com voz
esganiçada. ― Eu disse que precisava dos dois!
Elenim sentiu-se um pouco assustada e chegou
a dar alguns passos para trás. De esguelha, percebeu ferimentos recentes
sangrarem pelo braço do homem:
― Seja o que for, Tiown, eu vou dar um
jeito. Onde estão os feridos? Quantas poções você precisa? Não tenho muita
coisa, mas acho que se pudermos...
― Não vai adiantar... ― Tiown começou a
andar de um lado para o outro ― Não vai dar certo... Você não entende...
O coração de Elenim voltou a acelerar. Estava
certa de que havia algo de errado.
― Tiown, onde está sua mulher? Onde está a
Milla?
Então o homem parou e encarou Elenim com
seus olhos assustados. Havia uma moldura de olheiras escuras entorno deles e
profundas marcas de choro. E neste instante, Elenim percebeu que estava tudo
acabado.
― Sinto muito, Elenim.
Um estrondo ecoou por toda a casa, fazendo
Elenim saltar automaticamente. A mulher se virou em direção à porta para correr,
mas, no mesmo instante, vários corpos cruzaram seu caminho. O reflexo das
armaduras lustrosas e a berrante capa roxa surgiram à sua frente e ela percebeu
que não havia mais escapatória.
Ao menos dez Guardas estavam ao seu redor e
dois deles seguravam seus braços. A bolsa com medicamentos foi arrancada de seu
ombro e jogada para aquele que parecia ser o capitão daquele grupo:
― Vocês cinco, ― ele disse a alguns Guardas
― sigam o rastro do marido dela. Tentem encontrá-lo na floresta. Com sorte, ainda
podemos pegá-lo ― e sorriu para Elenim. ― Depressa!
Cinco dos homens deixaram a casa às pressas
e logo em seguida Elenim foi colocada frente a frente com o capitão da Guarda:
― Sabia que eu pegaria vocês mais cedo ou
mais tarde ― ele falou, triunfante. ― Pessoas como vocês, que não sabem honrar
a própria terra, não merecem continuar vivos. Não são pessoas de honra.
― E você acha que Skan é? Um homem de honra?
― Elenim riu ― Para mim ele não passa de lixo.
O estalo da bofetada contra a mulher ecoou
por todo o cômodo. Elenim virou o rosto lentamente para o Guarda e voltou a
sorrir.
― Vocês não têm ideia do que Skan está
planejando, têm? Ele vai destruir tudo
o que conhecemos. Não vai haver mais Havalis, não vai haver Mustor, não vai
haver mais nada.
― Isso é o que o seu povo diz. Vocês acham que nós não sabemos o que vocês dizem por
aí, ham? Que foi Skan quem começou tudo isso? ― o Guarda abriu um pequeno
sorriso ― Nós sabemos a verdade. Nós sabemos o que vocês fizeram! Sabemos que o Círculo começou essa guerra, essa
maldita batalha pela coroa da Trindade. Mas quer saber? Nós vamos ganhar.
Apesar de ninguém apostar em Skan, nós
vamos defender o que é nosso. Havalis vai vencer e é isso o que importa!
― Vocês estão errados! ― Elenim falou
súplice ― Skan não está do lado de Havalis! Ele não está do lado de ninguém!
Ele só quer dominar tudo o que puder e destruir o que estiver pela frente! Vocês
têm que acreditar nisso!
Então o Guarda girou Elenim pelos cabelos e
aproximou seus lábios lentamente do ouvido da mulher:
― Eu já tenho em quem acreditar.
Com um empurrão, ambos começaram a caminhar
pela sala e seguiram na direção da porta. Atrás, os outros Guardas seguraram
com força Tiown e o arrastaram para fora também.
― Vocês disseram que me deixariam livre! Eu
e a minha mulher! ― ele gritou desesperado.
― Já vou levá-lo à sua mulher ― o capitão
sorriu.
E mais uma vez, Elenim se viu nas ruas de Mustor.
Agora era possível ouvir o barulho que vinha
da praça e ver a alguma movimentação de longe. Quando viu o rumo que a
caminhada estava tomando, a mulher levou os dedos discretamente até o bolso,
encontrou a pequena metade de Treimina
no fundo da veste e esmagou a pedra entre os dedos. O pó da pedra dançou entre
suas unhas e ela sentiu um misto de alívio e tristeza. Com isso, ela tinha certeza
de que haveria ainda alguma chance de Gordem sobreviver e escapar dos
Guardas... com isso, ela tinha certeza de que ele saberia instantaneamente que
ela estava... morta.
A Forca surgiu como uma grande tormenta mais
à frente. Quando se aproximaram, Elenim
percebeu que todos os corpos em exposição haviam sido retirados e que quatro
novas execuções haviam sido preparadas.
― O que estão fazendo? Disseram que a gente
ia ser perdoado! Vocês prometeram! ― desesperou-se Tiown.
O capitão da Guarda apenas sorriu e
continuou caminhando.
Quando finalmente chegaram à Forca, o
capitão da Guarda subiu à frente dos outros e guiou-os lentamente até o topo do
tablado. De um jeito estranho, Elenim sentiu-se aliviada por caminhar sobre
aquela madeira, já que conhecia muito bem as atrocidades que eram feitas
àqueles que eram levados para a “coleta de informações”. Sabia que, por ser
mulher, teria uma passagem direta para a morte, sem tortura física ou
psicológica, e que ninguém precisaria sujar as mãos com seu sangue.
À medida que ia subindo as escadas, Elenim percebia
um aglomerado de aldeões se aproximar e vários rostos se virarem em sua direção.
Algumas pessoas estavam chocadas, outras simplesmente interessadas em saber os
rostos dos mais novos “apanhados” da Guarda Real. Mas o que se via na maioria
delas era o que Elenim conseguiu identificar como prazer de justiça.
Assim que as pessoas se aproximaram, o
capitão da Guarda se posicionou na frente do palco e bradou à multidão já ansiosa:
― Hoje, povo de Mustor, mais traidores foram
pegos pela Guarda Real de Havalis. São culpados, como devem imaginar, por
traição direta à coroa, contra o próprio
rei! São pessoas sem caráter, pessoas que insistem em manchar a honra do nosso
reino e das pessoas que vivem aqui ― o capitão fez uma pequena pausa para
encarar cada aldeão nos olhos. ― Mas hoje, povo de Mustor, esses traidores
serão exemplo da vergonha que se espalha por Havalis. Eles serão exemplo de que
o Círculo pode, sim, ser derrotado por homens de fé e bravura. E em nome de
Havalis, o Primeiro, e Skan, nosso líder nesta guerra, condeno esses traidores
à morte.
Vários gritos em aprovação ecoaram pela
praça e imediatamente os presos foram arrastados até às cordas. Com cuidado,
foram todos posicionados sobre o alçapão da Forca e uma corda úmida foi
colocada em volta de seus pescoços. Ao mesmo tempo, mais uma pessoa foi levada
para o tablado e Elenim reconheceu imediatamente a figura.
― Milla?! MILLA, NÃO!
TIREM ELA DAQUI! ELA NÃO!
Tiown gritava desesperado. As lágrimas
cortavam as bochechas macilentas e escorriam lentamente pela corda em seu
pescoço. Ao mesmo tempo, Milla, uma mulher magra e com grandes olhos negros,
lutava desesperada para se desvencilhar do Guarda que a segurava com força.
Logo, ela também tinha uma corda presa à sua garganta.
― Tiown, Tiown, me ajuda, por favor, me
ajuda. ― a mulher desesperou-se.
― Calma, amor, vai ficar tudo bem, calma ―
Tiown a consolou. Em seguida virou-se enfurecido para o Capitão ― VOCÊ
DISSE QUE NOS DEIXARIA EM PAZ! VOCÊ PROMETEU, DESGRAÇADO!
― Como prometido: aí está sua mulher. ― o
capitão disse, tão baixo que só os presos foram capazes de ouvir. ― Acabem logo
com isso ― ele rosnou para os Guardas.
Não houve, então, tempo para muita coisa.
Elenim ergueu os olhos para o céu e percebeu
que o sol não sairia uma última vez para ela. Pensou, com um frio no estômago,
que aquela guerra estava longe de acabar. Torceu, também, para que o marido
estivesse bem, onde quer que estivesse; orou para que o filho voltasse bem para
casa e, por fim, pediu aos Deuses que Skan fosse derrotado...
E se deu conta de que aquele não era mesmo o
seu dia de sorte.
O alçapão, então, se abriu."
Prefácio do livro "A lenda de Arion: Asaari".
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