domingo, 10 de maio de 2015

Mães Guerreiras



"A mulher cobriu o rosto com o capuz e deixou a floresta.
Ela caminhava tentando não fazer barulho com seus sapatos, mas estava certa de que os aldeões a ouviriam quando alcançasse a Praça do Chafariz. Se tivesse alguma sorte, muitos dos vendedores já teriam tomado o lugar com as barracas e sua figura insignificante passaria despercebida entre eles...
O problema é que ela não acreditava em sorte.
Elenim era uma mulher que jamais levara em conta o acaso e tinha certeza de que hoje não seria a primeira vez. Sabia que era uma loucura deixar o marido em casa em tempos como estes e que ninguém em seu lugar se arriscaria de tal maneira. Mas não havia escolha. Era, afinal, uma mulher de honra. Prometera, em nome do filho, ajudar no que fosse possível na luta do Círculo. Talvez, se pudesse ajudar de alguma forma aquelas pessoas, se seus esforços mínimos pudessem contribuir para acabar com aquela guerra, talvez o filho pudesse voltar são e salvo para casa...
Com um susto, percebeu que a praça já aparecia mais à frente, com alguma movimentação. Acelerou os passos e tentou manter o rosto escondido sob a sombra da capa, sentido o vento cortar sua pele suavemente. Os cartazes de alistamento de novos Guardas se espalhavam por toda parte e isso deixou seu coração ainda mais inquieto.
“Como Skan podia fazer isso?” Pensava com desprezo. “Como podia enganar as pessoas dessa maneira?!”.
O Chafariz Congelado surgiu assim que as casas terminaram e o centro da praça se abriu à sua frente de forma assustadora. O singelo monumento estava brilhante e petrificado como sempre estivera nos últimos milênios, escondendo a grande rede de túneis, que poucos sabiam existir, sob o objeto de prata.
Mas o mais assustador da Praça vinha logo em seguida. Por trás do Chafariz e próximo ao antigo Templo dos Deuses, um palco de horror lançava uma onda de medo em todas as direções, exibindo até em que ponto o rei estava disposto a ir naquela guerra. A Forca, que já havia executado uma centena de pessoas, agora exibia seis corpos vacilantes, cujos donos haviam sido condenados por traição à coroa. O mais triste e assustador era o da última condenada, uma garota de quinze Eras, cujos pais haviam sido pegos conspirando contra o rei.
Mas Elenim sabia que não havia conspiração. O crime pelo qual a garota havia pagado estava além da pura audácia de enfrentar o rei. O que a menina e seus pais queriam realmente fazer era abrir os olhos do povo... E Skan não iria permitir isso.
Elenim virou uma esquina e atravessou a praça sem chamar a atenção. Os poucos comerciantes que estavam pelo caminho estavam tão preocupados com os produtos em exposição que quase não viram a mulher passar pelo local.  Os que viram, não se preocuparam também. Havia muito trabalho a se fazer.
Quando viu que a passagem pela praça fora mais fácil do que o esperado, Elenim suspirou aliviada e imaginou que, talvez, finalmente a sorte estivesse sorrindo para ela. Quem sabe aquele dia, enfim, fosse fazer alguma diferença? Quem sabe não fosse realmente o seu dia de sorte? Era isso pelo menos o que esperava quando, por fim, chegou ao seu destino.
Três batidas na porta pareceram uma dezena de relâmpagos no silêncio da rua que acabara de chegar. Ela olhou aflita para os lados e, pelo que pareceu uma eternidade, aguardou do lado de fora. A porta se abriu lentamente e, através de uma fresta, um olho cheio de rugas encarou a mulher por um segundo e a estudou. No instante seguinte, Elenim já saltava para dentro e a porta batia com força às suas costas.
― Onde está Gordem? Eu disse que precisava dos dois!
Um homem baixo e esquelético olhava com uma mistura de desespero e raiva para Elenim, enquanto procurava algum sinal do marido da mulher.
― Achei melhor vir sozinha. Já viu como está lá fora? Há Guardas por toda parte! Não dá mais para fazer esse tipo de coisa, Tiown, eles estão desconfiados demais! Temos fornecido poções demais pra vocês!
― Não importa! ― Tiown gritou com voz esganiçada. ― Eu disse que precisava dos dois!
Elenim sentiu-se um pouco assustada e chegou a dar alguns passos para trás. De esguelha, percebeu ferimentos recentes sangrarem pelo braço do homem:
― Seja o que for, Tiown, eu vou dar um jeito. Onde estão os feridos? Quantas poções você precisa? Não tenho muita coisa, mas acho que se pudermos...
― Não vai adiantar... ― Tiown começou a andar de um lado para o outro ― Não vai dar certo... Você não entende...
O coração de Elenim voltou a acelerar. Estava certa de que havia algo de errado.
― Tiown, onde está sua mulher? Onde está a Milla?
Então o homem parou e encarou Elenim com seus olhos assustados. Havia uma moldura de olheiras escuras entorno deles e profundas marcas de choro. E neste instante, Elenim percebeu que estava tudo acabado.
― Sinto muito, Elenim.
Um estrondo ecoou por toda a casa, fazendo Elenim saltar automaticamente. A mulher se virou em direção à porta para correr, mas, no mesmo instante, vários corpos cruzaram seu caminho. O reflexo das armaduras lustrosas e a berrante capa roxa surgiram à sua frente e ela percebeu que não havia mais escapatória.
Ao menos dez Guardas estavam ao seu redor e dois deles seguravam seus braços. A bolsa com medicamentos foi arrancada de seu ombro e jogada para aquele que parecia ser o capitão daquele grupo:
― Vocês cinco, ― ele disse a alguns Guardas ― sigam o rastro do marido dela. Tentem encontrá-lo na floresta. Com sorte, ainda podemos pegá-lo ― e sorriu para Elenim. ― Depressa!
Cinco dos homens deixaram a casa às pressas e logo em seguida Elenim foi colocada frente a frente com o capitão da Guarda:
― Sabia que eu pegaria vocês mais cedo ou mais tarde ― ele falou, triunfante. ― Pessoas como vocês, que não sabem honrar a própria terra, não merecem continuar vivos. Não são pessoas de honra.
― E você acha que Skan é? Um homem de honra? ― Elenim riu ― Para mim ele não passa de lixo.
O estalo da bofetada contra a mulher ecoou por todo o cômodo. Elenim virou o rosto lentamente para o Guarda e voltou a sorrir.
― Vocês não têm ideia do que Skan está planejando, têm? Ele vai destruir tudo o que conhecemos. Não vai haver mais Havalis, não vai haver Mustor, não vai haver mais nada.
― Isso é o que o seu povo diz. Vocês acham que nós não sabemos o que vocês dizem por aí, ham? Que foi Skan quem começou tudo isso? ― o Guarda abriu um pequeno sorriso ― Nós sabemos a verdade. Nós sabemos o que vocês fizeram! Sabemos que o Círculo começou essa guerra, essa maldita batalha pela coroa da Trindade. Mas quer saber? Nós vamos ganhar. Apesar de ninguém apostar em Skan, nós vamos defender o que é nosso. Havalis vai vencer e é isso o que importa!
― Vocês estão errados! ― Elenim falou súplice ― Skan não está do lado de Havalis! Ele não está do lado de ninguém! Ele só quer dominar tudo o que puder e destruir o que estiver pela frente! Vocês têm que acreditar nisso!
Então o Guarda girou Elenim pelos cabelos e aproximou seus lábios lentamente do ouvido da mulher:
― Eu já tenho em quem acreditar.
Com um empurrão, ambos começaram a caminhar pela sala e seguiram na direção da porta. Atrás, os outros Guardas seguraram com força Tiown e o arrastaram para fora também.
― Vocês disseram que me deixariam livre! Eu e a minha mulher! ― ele gritou desesperado.
― Já vou levá-lo à sua mulher ― o capitão sorriu.
E mais uma vez, Elenim se viu nas ruas de Mustor.
Agora era possível ouvir o barulho que vinha da praça e ver a alguma movimentação de longe. Quando viu o rumo que a caminhada estava tomando, a mulher levou os dedos discretamente até o bolso, encontrou a pequena metade de Treimina no fundo da veste e esmagou a pedra entre os dedos. O pó da pedra dançou entre suas unhas e ela sentiu um misto de alívio e tristeza. Com isso, ela tinha certeza de que haveria ainda alguma chance de Gordem sobreviver e escapar dos Guardas... com isso, ela tinha certeza de que ele saberia instantaneamente que ela estava... morta.

A Forca surgiu como uma grande tormenta mais à frente.  Quando se aproximaram, Elenim percebeu que todos os corpos em exposição haviam sido retirados e que quatro novas execuções haviam sido preparadas.
― O que estão fazendo? Disseram que a gente ia ser perdoado! Vocês prometeram! ― desesperou-se Tiown.
O capitão da Guarda apenas sorriu e continuou caminhando.
Quando finalmente chegaram à Forca, o capitão da Guarda subiu à frente dos outros e guiou-os lentamente até o topo do tablado. De um jeito estranho, Elenim sentiu-se aliviada por caminhar sobre aquela madeira, já que conhecia muito bem as atrocidades que eram feitas àqueles que eram levados para a “coleta de informações”. Sabia que, por ser mulher, teria uma passagem direta para a morte, sem tortura física ou psicológica, e que ninguém precisaria sujar as mãos com seu sangue.
À medida que ia subindo as escadas, Elenim percebia um aglomerado de aldeões se aproximar e vários rostos se virarem em sua direção. Algumas pessoas estavam chocadas, outras simplesmente interessadas em saber os rostos dos mais novos “apanhados” da Guarda Real. Mas o que se via na maioria delas era o que Elenim conseguiu identificar como prazer de justiça.
Assim que as pessoas se aproximaram, o capitão da Guarda se posicionou na frente do palco e bradou à multidão já ansiosa:
― Hoje, povo de Mustor, mais traidores foram pegos pela Guarda Real de Havalis. São culpados, como devem imaginar, por traição direta à coroa, contra o próprio rei! São pessoas sem caráter, pessoas que insistem em manchar a honra do nosso reino e das pessoas que vivem aqui ― o capitão fez uma pequena pausa para encarar cada aldeão nos olhos. ― Mas hoje, povo de Mustor, esses traidores serão exemplo da vergonha que se espalha por Havalis. Eles serão exemplo de que o Círculo pode, sim, ser derrotado por homens de fé e bravura. E em nome de Havalis, o Primeiro, e Skan, nosso líder nesta guerra, condeno esses traidores à morte.
Vários gritos em aprovação ecoaram pela praça e imediatamente os presos foram arrastados até às cordas. Com cuidado, foram todos posicionados sobre o alçapão da Forca e uma corda úmida foi colocada em volta de seus pescoços. Ao mesmo tempo, mais uma pessoa foi levada para o tablado e Elenim reconheceu imediatamente a figura.
― Milla?! MILLA, NÃO! TIREM ELA DAQUI! ELA NÃO!
Tiown gritava desesperado. As lágrimas cortavam as bochechas macilentas e escorriam lentamente pela corda em seu pescoço. Ao mesmo tempo, Milla, uma mulher magra e com grandes olhos negros, lutava desesperada para se desvencilhar do Guarda que a segurava com força. Logo, ela também tinha uma corda presa à sua garganta.
― Tiown, Tiown, me ajuda, por favor, me ajuda. ― a mulher desesperou-se.
― Calma, amor, vai ficar tudo bem, calma ― Tiown a consolou. Em seguida virou-se enfurecido para o Capitão ― VOCÊ DISSE QUE NOS DEIXARIA EM PAZ! VOCÊ PROMETEU, DESGRAÇADO!
― Como prometido: aí está sua mulher. ― o capitão disse, tão baixo que só os presos foram capazes de ouvir. ― Acabem logo com isso ― ele rosnou para os Guardas.
Não houve, então, tempo para muita coisa.
Elenim ergueu os olhos para o céu e percebeu que o sol não sairia uma última vez para ela. Pensou, com um frio no estômago, que aquela guerra estava longe de acabar. Torceu, também, para que o marido estivesse bem, onde quer que estivesse; orou para que o filho voltasse bem para casa e, por fim, pediu aos Deuses que Skan fosse derrotado...
E se deu conta de que aquele não era mesmo o seu dia de sorte.

O alçapão, então, se abriu."

Prefácio do livro "A lenda de Arion: Asaari". 


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